Claudia Jurberg
Gasolina foi uma das quatro aldeias visitadas pela equipe encarregada da realização do estudo sobre a prevalência e o impacto das coinfeccões de malária e parasitoses intestinais em quatro aldeias Yanomami (Fotos: Divulgação) |
Um estudo brasileiro sobre a prevalência e o impacto das coinfeccões de malária e parasitoses intestinais em quatro aldeias Yanomami acaba de sair publicado no periódico científico Journal of Infection and Public Health. O poliparasitismo, ou seja, a infecção por mais de um parasita, foi identificada em 83,7% dos indígenas. Os resultados mostraram que a prevalência de protozoários intestinais foi de 100%, sendo que 40% estavam polinfectados com helmintos e 15.4% com malaria e/ou helmintos. Entamoeba histolytica estava presente em 71,5% dos indígenas e Giardia intestinalis em 6,4% além de outras espécies não patogênicas como E. coli (100%). Em relação às espécies de helmintos, os Ancilostomídeos foram os mais prevalentes (20,3%), seguidos de Ascaris lumbricoides (19,7%), Trichuris trichiura (3,7%), Hymenolepis nana (2,0%), Enterobius vermicularis (1,4%) e Strongyloides stercoralis (0,7%)
Coordenado pela cientista Joseli de Oliveira Ferreira, do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, o estudo foi realizado no Polo Base Marari, uma comunidade indígena Yanomami, localizada ao norte da Amazônia brasileira, na fronteira com a Venezuela. Foram incluídos no estudo 450 indígenas, distribuídos em quatro aldeias: Alapusi, Castanha/Ahima, Gasolina e Taibrapa. A coleta das amostras foi realizada em viagens às aldeias e duraram cerca de 30 dias. Nas amostras de fezes, foi detectada uma prevalência de 34% de infecções por protozoários e helmintos, ao mesmo tempo, sendo os parasitas mais comuns as amebas do tipo Entamoeba coli e Entamoeba histolytica e o verme Ascaris lumbricoides e ancilostomídeos.
Os pesquisadores também observaram uma prevalência de malária de 14,2%. A espécie mais prevalente foi Plasmodium vivax com 45,9%, seguida de P. falciparum (23%), P. malariae (3,3%) e infecções mistas em um mesmo indivíduo (26,2%): P. vivax + P. falciparum, P. vivax + P. malariae e P. falciparum.
Joseli relata que 10% dos pacientes com malária tinham também infecções por protozoários intestinais, sendo comum a identificação de indígenas com Plasmodium vivax, Escherichia coli e Entamoeba histolytica; e infectados com malária, protozoários e helmintos, ao mesmo tempo, sendo a associação predominante de Plasmodium vivax, Escherichia coli, Entamoeba histolytica e Ascaris lumbricoides.
Outro dado relevante foi a baixa parasitemia de malária nos indígenas adultos que, muitas vezes, não foi identificada no método tradicional de diagnóstico – um exame microscópico de gota espessa corada pelo Giemsa. Usando PCR, que é mais sensível que a gota espessa, aproximadamente 86% dos infecções foram consideradas submicroscópicas, sendo a maioria em adultos.
Dispondo apenas de aeronaves de pequeno porte, equipe enfrentou dificuldades com a logística no transporte de pessoal e do material necessário às coletas e à realização de ações sanitárias |
Esses dados comprovam que os métodos moleculares são mais apropriados para a identificação de infecções maláricas nas aldeias Ianomamis estudadas e são importantes para o delineamento e implementação de medidas de vigilância e controle que visam a eliminação da malária nas populações ameríndias da Amazônia. Joseli destaca que as crianças e mulheres grávidas são as mais vulneráveis pela doença.
O estudo de coleta de amostras de sangue e fezes reuniu além dos pesquisadores da Fiocruz, do Centro de Medicina Tropical de Rondônia, do Distrito Sanitário Indígena Yanomami e ocorreu em 2015. Os dados têm sido processados, desde então, e contribuirão para ações emergenciais junto às comunidades indígenas. A demora para publicação dos resultados se deu por diversos fatores, inclusive falta de recursos financeiros.
"Em breve, teremos outro artigo sobre a incidência de hepatites virais na comunidade. Não foi fácil montar a logística no transporte em aeronaves pequenas para levar toda a equipe e o material necessário para as coletas e ações sanitárias. Várias viagens tiveram que ser feitas para conversas com as lideranças indígenas de cada aldeia. E ainda tivemos que contar com ajuda de um intérprete para explicar a importância do estudo. Enfrentamos também desafios com as distâncias entre as aldeias, que podem consumir mais de cinco horas de caminhadas de onde o avião pousa", diz Joseli, que acrescenta. "Outro entrave foi a falta de apoio e de recursos financeiros suficientes para custear os gastos do trabalho de campo e do estudo. Só com a aquisição de kits de diagnóstico das hepatites foram consumidos mais de R$ 40 mil. A pesquisa também demorou a ser aprovada pelo Comitê de Ética. Mas ressalto que todos os indivíduos com diagnóstico positivo foram tratados logo após o trabalho de campo. Além de levarmos medicamentos para os agravos diagnosticados, treinamos os técnicos do Distrito Sanitário para auxiliar no estudo".
A vida indígena – Os nativos ainda mantêm modos tradicionais de subsistência e são caçadores-coletores seminômades e agricultores rurais. As casas dessas aldeias, batizadas de shabonos, são construções circulares de madeira e que acomodam até 300 pessoas. As aldeias carecem de banheiros e a água do rio é usada para tomar banho, beber e cozinhar. De acordo com relatos de Joseli, já havia invasões de garimpeiros na região e contaminação das águas e do solo, na época da pesquisa, e ela acredita que, de lá para cá, a situação da saúde dos Yanomami só tenha piorado.
"A alta prevalência de poliparasitismo intestinal com coinfecções por Plasmodium devem também contribuir para o surgimento de quadros de anemia e ou desnutrição e evidencia a necessidade de combinar estratégias que possam auxiliar no controle tanto da malária quanto das parasitoses intestinais e gerar uma abordagem de saúde alinhada com as perspectivas indígenas. Fizemos relatórios sobre os achados desta pesquisa e estamos envolvidos nas atuais ações emergenciais", afirma.
Joseli de Oliveira Ferreira: pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, ela coordenou a realização do estudo |
Como perspectivas, a pesquisadora espera testar a eficácia dos atuais medicamentos e o esquema de tratamento contra a malária. Além disso, ela destaca também a importância de avaliar a cobertura vacinal da população contra as hepatites diante da dificuldade da chegada de imunizantes às aldeias e da falta de energia elétrica para mantê-los a uma temperatura adequada.
A precária atenção aos povos indígenas pelos órgãos oficiais parece ser mais lenta que a ação dos invasores de suas terras, levando-os, assim, a viver em áreas menores, o que aumenta a circulação de indivíduos no mesmo espaço de forma mais intensa e constante, propiciando o contágio e contribuindo para a manutenção das parasitoses intestinais na população.
É importante ressaltar que nas comunidades indígenas, nem todos os conceitos que os não-indígenas conhecem podem ser aplicados. Um programa eficaz de controle contra as parasitoses intestinais deve levar em conta os hábitos indígenas. Para isso, deve-se considerar formas alternativas de saneamento ambiental que vá de acordo com as percepções dos Yanomami de doença, moradia, higiene pessoal e meio ambiente.
A pesquisa foi financiada pela FAPERJ, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pelo Programa de Ações Estratégicas para o Desenvolvimento e Fortalecimento dos Laboratórios credenciados no Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz.