Paula Guatimosim
Lançamento do livro reuniu a equipe envolvida na pesquisa (Fotos: Arquivo pessoal e reprodução) |
Os confrontos armados são um dos problemas que mais afetam o ensino no Rio de Janeiro. Apenas no município, 1/3 das mais de 1.500 escolas estão localizadas em áreas consideradas de risco, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Relatório divulgado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) mostra que 1.154 escolas da rede de ensino municipal foram afetadas por tiroteios em 2019. O impacto da violência naquele ano mudou a rotina de 74% das unidades escolares da rede municipal devido a operações e tiroteios, deixando 450 mil estudantes sem aula.
Para agravar a situação, a pandemia de Covid-19 em 2020 provocou o crescimento da evasão escolar. Gestores da educação pública no Rio de Janeiro estimam que só na capital, 25 mil alunos abandonaram as escolas do município no último bimestre de 2021. Na rede estadual, cerca de 80 mil estudantes podem ter desistido dos estudos. A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro apurou que 11% do total de alunos matriculados tiveram menos de 75% de frequência nas atividades presenciais ou a distância. A falta de condições, como as limitações impostas pelo confinamento, a incapacidade de acesso a computadores e celulares, ou até mesmo à rede de conexão com a internet aumentaram o distanciamento dos alunos das escolas.
O livro "Educação e favela: refletindo sobre antigos e novos desafios" é uma coletânea de artigos, resultado do "Seminário Educação e Favela", que reuniu cerca de 300 pessoas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em setembro 2019, realizado pelo Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (Nupec/Edu), em parceria com o Núcleo de Estudos sobre Periferias (NEsPE/FEBF), o Laboratório de Etnografia Metropolitana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LeMetro/IFCS-UFRJ) e o Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (INCT-InEAC/UFF).
Capa do livro, que reúne coletânea de artigos apresentados no seminário homônimo realizado na Uerj |
Assim como o evento que o originou, a obra, lançada pela Consequência Editora, com recursos do Programa de Apoio à Editoração, da FAPERJ, problematiza algumas questões contemporâneas relevantes acerca da relação entre educação e favela, tendo como horizonte as condições históricas, sociais e urbanas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Para tanto, reúne dez capítulos estruturados em torno de dois eixos temáticos: "Desigualdades urbanas e desigualdades escolares: o caso das favelas do Rio de Janeiro" e "Os impactos da violência armada sobre as escolas públicas". Entre os autores, pesquisadores de diversas instituições e distintas formações – como antropologia, sociologia, história, pedagogia –, além de professores da rede pública de ensino (municipal e estadual), configurando uma grande variedade de abordagens e análises sobre diferentes temáticas e desafios que envolvem o complexo universo da educação e as favelas.
A antropóloga Leticia de Luna Freire, organizadora da obra junto com a também antropóloga Neiva Vieira da Cunha, conta que entre os cinco primeiros capítulos da primeira parte estão o artigo de Marcelo Burgos, professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais e coordenador do Curso de Especialização em Sociologia Política e Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Seu estudo focaliza os impactos da segregação socioespacial sobre o trabalho escolar e o pouco preparo das escolas para lidar com estudantes e famílias moradores de favelas. A remoção de favelas é tema de dois outros artigos dessa primeira parte do livro. Anna Cecília Costa da Silva, professora de Geografia da rede municipal do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias e mestre em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGECC/FEBF-UERJ) apresenta os resultados da sua pesquisa com alunos de uma escola pública de Duque de Caxias que vivenciaram a remoção da favela vizinha Teixeira Mendes. E a própria Letícia de Luna assina outro artigo acerca dos resultados de oficinas realizadas com crianças e jovens da favela Metrô Mangueira, removida para dar lugar à ampliação do Complexo Esportivo do Maracanã, por ocasião da Copa do Mundo de 2014.
A segunda parte da coletânea reúne outros cinco capítulos com foco em um tema que, segundo os autores, se torna cada vez mais incontornável e urgente: os múltiplos impactos da violência armada sobre as escolas públicas. Esse tema é o foco do artigo assinado por Edson Diniz, oriundo de uma das favelas que compõem o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Formado em história pela Uerj e doutor em Educação Brasileira pela PUC-Rio, Diniz foi professor da rede pública e privada durante 20 anos, fundou a Redes de Desenvolvimento da Maré e criou o Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré. Em seu artigo, ele fala das relações entre escolas públicas-famílias nos territórios populares e o papel da escola pública em territórios vulneráveis.
Já o estudo do professor adjunto do Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Uerj Eduardo Ribeiro aborda o impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) sobre a educação pública, enquanto os pesquisadores Mario Brum, professor do Departamento de História da Uerj, e Rosana Muniz, pedagoga e professora da rede municipal de ensino do Rio, analisam o impacto de tiroteios frequentes sobre o cotidiano de uma escola pública no Complexo do Chapadão. A violência como tema do cotidiano de escolas públicas e a marginalização também é tema do estudo do antropólogo Marcos Veríssimo em uma escola pública de São Gonçalo.
Neiva Vieira da Cunha (esq.) e Leticia de Luna Freire autografam o livro que avalia os impactos da segregação socioespacial sobre o trabalho escolar |
Os pesquisadores concluem que as diversas questões e abordagens reunidas no livro denotam a impossibilidade de dissociação entre favela e educação de temas como segregação socioespacial, moradia, remoção, racismo, estigma e segurança pública, entre outros. O objetivo da coletânea, ressaltam, não é reforçar estereótipos ou dogmas historicamente construídos, mas identificar as resistências e reconhecer as potencialidades de atores e grupos sociais que compõem este universo e contribuir para a formulação de políticas públicas ancoradas nos princípios de justiça e igualdade.
Para avaliar os efeitos da pandemia sobre a educação, Leticia de Luna Freire, como coordenadora do Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (NUPEC/EDU-UERJ) e seus colegas Marcelo Burgos (PUC-Rio) e Mônica Peregrino (UniRio), promoveram em 2020, em plena pandemia, o Ciclo de Debates "Escola municipal, eleições e pandemia". A suspensão das aulas e a dificuldade de muitos alunos em acompanhar o ensino remoto agravou o já frágil vínculo dos alunos, aumentando a evasão escolar. Eles concluem que o impacto da pandemia será longo, que as mudanças impostas pela pandemia em um mundo dominado pelas novas tecnologias de comunicação tendem a repercutir em dimensões muito fundamentais da vida contemporânea, como o aumento do home office. Os pesquisadores também estão certos de que em meio a esse cenário de muitas dúvidas é preciso conciliar a defesa da escola como agência fundamental para as sociedades e para as democracias em especial. Para eles, a reabertura das escolas e a retomada das aulas exige todo um esforço de construção de consensos, desde sobre o que é efetivamente fundamental da rotina escolar e que precisa ser preservado, mas também sobre uma geração e, no limite, na sociedade como um todo.
O documento lembra que o direito à educação pública e a universalidade do acesso à educação básica no Brasil são conquistas relativamente recentes, garantidas apenas a partir da Constituição de 1988. As conclusões dos debates foram organizadas em dois grandes eixos. O primeiro trata da qualidade e intensidade do vínculo escolar, o segundo interpela a organização institucional do sistema escolar, mais especificamente suas formas de organização a partir da compreensão da escola como instituição social, entre outras. No entanto, os pesquisadores consideram que um dos impactos mais importantes da pandemia sobre a educação escolar é a oportunidade para que se revisite convicções e práticas já cristalizadas sobre o trabalho escolar, fazendo com que a questão do vínculo e da organização institucional sejam indissociáveis do debate público. Acesse os dados da edição aqui.