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Publicado em: 22/06/2023 | Atualizado em: 22/06/2023

Livro faz análise histórica comparativa das obras de Machado de Assis e Dostoiévski

Débora Motta

Capa do livro que apresenta as afinidades e diferenças entre as visões de mundo presentes nas obras dos dois autores, referências na literatura universal (Foto: Reprodução) 

Dois grandes escritores que viveram em continentes distintos no século XIX deixaram legados fundamentais para a literatura mundial. Nos trópicos do Brasil, Machado de Assis. Na gélida Rússia, Fiódor Dostoiévski. Uma análise comparativa da produção literária e do pensamento de ambos os autores, sob a perspectiva da História, Literatura e Filosofia, é a proposta da obra Da Casa Verde ao Subsolo – Machado de Assis e Dostoiévski entre modernidade e tradição (Editora Mauad X, 2023, 320 p.), escrita pela historiadora Ana Carolina Huguenin Pereira. O livro foi publicado com apoio da FAPERJ, por meio do programa Apoio à Editoração.

Adaptação da tese de Doutorado de Ana Carolina, defendida sob orientação do professor e historiador Daniel Aarão Reis na Universidade Federal Fluminense (UFF), o livro apresenta, de forma original e aprofundada, as afinidades e diferenças entre as visões de mundo presentes nas obras dos dois autores. Ambos refletiram sobre as mudanças nos costumes, na religião, na ciência, nas relações pessoais e econômicas que se estabeleciam no século XIX, com pontos de reflexão em comum, apesar da distância geográfica. 

“Tanto Machado de Assis quanto Dostoiévski tinham olhares muito críticos diante das transformações sociais e culturais que estavam ocorrendo em seus países, que passaram por processos autoritários de modernização vivenciados por ambos os autores. Eles se tornaram vozes dissonantes e grandes referências literárias, sendo dois 'mestres na periferia do capitalismo', para utilizar aqui a expressão de Roberto Schwarz”, explicou.

Ela lembrou que o contexto rural e o arbítrio senhorial predominavam nos dois países naquele período oitocentista. “No Império Russo, a maioria da população vivia em condições precárias, sob o auspício do Czar e o regime de servidão, que só foi extinto em 1861. Já no Brasil monárquico, a desigualdade social também vigorava, acompanhada fundamentalmente pelo horror da escravidão, que só foi abolida em 1888, ao que se seguiu a Proclamação da República”, recordou. 

Esse olhar aguçado sobre as classes sociais que se estabeleciam no decorrer do processo de urbanização, que se concentravam em cidades como Rio de Janeiro e São Petersburgo, está presente nas obras dos dois autores, na dicotomia entre tradição e modernidade. “Machado de Assis, em Esaú e Jacó e em Quincas Borba, critica a crescente monetarização das relações sociais. Dostoiévski também abordou o tema por diversas vezes, criticando essa monetarização em detrimento dos vínculos sociais mais orgânicos, mais sólidos, de compaixão e solidariedade entre as pessoas”, citou.

“É como se as elites russa e brasileira reunissem, em atos e ideias, o pior do contexto tradicional (autoritarismo, brutalidade e desmando, o sentimento de superioridade intelectual, cultural e social – e no caso do brasileiro, também racial) e o pior legado, ou a ‘sombra densa’, que acompanharia as ‘maravilhas’ modernas. Podemos pensar, por exemplo, nos ‘homens de ação’ Palha (Quincas Borba) e Piotr Pietróvitch Lújin (Crime e castigo); em Santos (Esaú e Jacó) ou em Gânia (O idiota), vaidosos e inebriados com a possibilidade de ascensão social, nos quadros de uma prosperidade que não pressupõe, e mesmo rejeita, qualquer grandeza espiritual ou intelectual; ou ainda nos enriquecidos homens do povo Rogójin (O idiota) e Rubião (Quincas Borba), deslocados em meio à alta sociedade e animados por desejos de grandeza – aristocrática, no caso de Rubião, e controladora, no caso de Rogójin”, analisou a historiadora.

Ana Carolina Huguenin: a autora reflete sobre diálogos possíveis entre Machado de Assis e Dostoiévski (Foto: Divulgação)

Enquanto Machado destilava ironia em suas críticas à modernidade, Dostoiévski demonstrava angústia e desespero. Ambos eram céticos em relação ao cientificismo, ao estabelecimento da ideia de que o avanço científico promoveria automaticamente o progresso e a harmonia social. “Machado abordou a questão do cientificismo de forma crítica e mordaz em sua obra. Seu personagem Quincas Borba, por exemplo, personificou essa crítica, com uma sátira de Machado de Assis ao positivismo, às correntes evolucionistas e ao darwinismo social muito em voga à época. O personagem criou a filosofia fictícia do humanitismo, que preconizava ‘ao vencedor, as batatas’, ou seja, na luta pela sobrevivência, quem vence é o mais forte. Ele naturaliza, assim, a desigualdade, a violência e as injustiças de toda sorte que grassavam em seu país e no mundo. E o faz enquanto herdeiro ocioso e senhor de escravos que nunca teve de trabalhar, e muito menos lutar, para garantir o pão – ou as “batatas” disse.

Uma divergência é apontada entre os escritores. “Dostoiévski reivindica a tradição religiosa ortodoxa russa como um caminho de redenção, defendendo a tradição religiosa, a dimensão da fé, e rejeitando o secularismo, o voluntarismo e o ateísmo do Ocidente. Seu ideal cristão é incorporado, por exemplo, pela personagem Sônia, a prostituta redimida em Crime e Castigo. Já Machado de Assis, certamente mais cético, não pregava que a religião fosse antídoto para os males do mundo contemporâneo”, pontuou.  

O livro, assim, pinta um quadro artístico e histórico dos dois autores. “Analisei aproximações temáticas que sugerem diálogos possíveis entre as obras desses dois grandes gênios da literatura universal, com suas críticas às mazelas humanas, modernas e nacionais”, concluiu Ana Carolina Huguenin. A autora também é professora de História Contemporânea do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), na Faculdade de Formação de Professores (FFP). Machado de Assis completaria 182 anos se vivo fosse nesta quarta, 21 de junho, data de seu aniversário.

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