Marcos Patricio
No Laboratório MultiMassas da Uerj, vinculado à rede temática, os pesquisadores contam com equipamentos que permitem analisar o nível de drogas em amostras do sangue e do cérebro (Foto: Marcos Patricio) |
O consumo de fentanil como substância com potencial de causar dependência e transtornos graves vem chamando a atenção de pesquisadores e de autoridades das áreas de Saúde e Segurança Pública do Brasil. O receio é que se repita no País, o que vem acontecendo nos Estados Unidos, onde o uso indevido do opioide é considerado um problema de saúde pública. Lá, em 2021, cerca de 70 mil pessoas morreram por overdose da substância. Os números fazem do uso indiscriminado do medicamento a principal causa de morte entre pessoas com menos de 50 anos no país.
No Brasil, os registros sobre o uso indevido do fentanil terapêutico e da sua versão ilícita, produzida pelo tráfico, ainda são esparsos. Mas, as autoridades estão atentas ao tráfico e ao consumo da substância no País. A Polícia Civil do Espírito Santo apreendeu, em fevereiro deste ano, 31 frascos de citrato de fentanila, em meio a outras drogas, em um laboratório escondido pelo tráfico em uma casa em Cariacica, na Região Metropolitana de Vitória.
Dias depois, em 20 de março, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas (CIATox), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), emitiu um alerta sobre o uso de novas substâncias psicoativas contendo fentanil. Os testes, realizados pelo Laboratório de Análises Toxicológicas (LTA) da instituição, no primeiro trimestre, confirmaram a presença de fentanil em drogas consumidas por seis usuários atendidos em emergências na Região Metropolitana de Campinas. As pessoas deram entrada nas unidades por uso abusivo de substâncias como cocaína, LSD e K2 (canabinoides sintéticos, análogos à maconha, mas bastante mais potentes).
O perfil de utilização do fentanil no Brasil é um dos estudos que vêm sendo desenvolvidos pela rede temática que investiga o efeito do uso de drogas apoiada pela FAPERJ. Os pesquisadores vêm analisando o padrão de prescrição de opioides. Em especial, do fentanil, cuja utilização aumentou sensivelmente a partir do início da pandemia de Covid-19, em 2020. O medicamento é adotado por centros cirúrgicos e unidades de terapia intensiva como anestésico e como analgésico para atenuar a dor intensa.
O fentanil foi sintetizado, em 1960, para atender às necessidades da medicina intensiva. O problema é a sua utilização indevida como substância de uso não terapêutico. “Para entender melhor o modo como o fentanil está sendo usado nos hospitais, montamos uma série histórica com informações registradas ao longo de 10 anos sobre o uso de opioides, em 24 unidades de um importante grupo hospitalar privado presente em vários estados brasileiros”, explica o coordenador da rede de pesquisa, o médico Francisco Inácio Bastos, que é apoiado pelo programa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ. Doutor em Saúde Pública, Bastos é pesquisador titular do Laboratório de Informação em Saúde (LIS) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Francisco Bastos: para o coordenador da rede, entender como o fentanil é prescrito e controlar sua utilização são ações importantes para evitar que o problema dos EUA se repita no Brasil (Foto: divulgação) |
A série histórica faz parte da tese de doutorado do farmacêutico Rômulo Carvalho, orientando de Bastos e do pesquisador Arnaldo Prata, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), também integrante da Rede FAPERJ. Segundo o pesquisador da Fiocruz, trata-se de um detalhado banco de dados sobre a dispensação de opioides, ou seja, com informações sobre os medicamentos, que as farmácias dos hospitais liberam para o atendimento, incluindo o fentanil.
A rede temática de drogas é apoiada pelo programa Redes de Pesquisa em Saúde no Estado do Rio de Janeiro da FAPERJ. Criado oficialmente em 2019, ano de lançamento do edital do programa, o grupo reúne pesquisadores experientes, jovens pesquisadores e seus alunos. Os primeiros vêm estudando o assunto há algumas décadas em suas respectivas instituições, muitas vezes em parcerias, que a rede veio consolidar e expandir.
“A Rede de Pesquisa de Drogas foi desenvolvida com o apoio da FAPERJ para estudar os efeitos das drogas de abuso sob vários aspectos. Desde como elas alteram o funcionamento normal do cérebro, a como elas afetam a nossa sociedade, ou seja, como a sociedade se comporta em função da presença das drogas no nosso meio”, explica o vice-coordenador da rede, o médico Alex Christian Manhães. Doutor em Biologia, Manhães é coordenador-geral do Programa de Pós-graduação em Biociências da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Também apoiado pelo programa Cientista do Nosso Estado, Manhães destaca a importância dos estudos realizados em rede, como o acompanhamento das tendências do consumo de drogas, cujos resultados podem subsidiar a criação de políticas públicas voltadas à prevenção e ao tratamento, entre outras ações.
Além da Fiocruz, da Uerj e do IDOR, a rede conta com pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).
As atividades da Rede de Pesquisas de Drogas da FAPERJ já foram tema de um vídeo do canal oficial da Fundação no YouTube. Para saber mais sobre o trabalho dos pesquisadores, assista ao vídeo por meio do link: https://youtu.be/PWFUPQNVQ4I
Opioide com potência analgésica de 50 a 100 vezes maior do que a da morfina, o fentanil está disponível no Brasil sob a forma injetável e em adesivos transdérmicos. É usado terapeuticamente como complemento da anestesia geral ou local e, também, para entubação. O medicamento tira do paciente o controle sobre a respiração. Daí o perigo quando utilizado sem controle por dependentes de opioides, que muitas vezes acabam vítimas de overdose. A morte se dá, via de regra, por parada cardiorrespiratória.
Um dos especialistas brasileiros em consumo de drogas, Francisco Bastos foi convidado pelos editores da revista “The Lancet Regional Health - Americas” a escrever um comentário sobre o uso de fentanil no País. No artigo “Reports of rising use of Fentanyl in contemporary Brazil is of concern, but a US-like crisis may still be averted”, publicado em maio, o pesquisador da Fiocruz explica que, apesar de o uso da substância no Brasil ser preocupante, ainda é possível evitar que a situação fuja do controle.
Alex Manhães: segundo o professor da Uerj, a rede de pesquisa apoiada pela FAPERJ estuda as alterações causadas pelas drogas no funcionamento do cérebro e como elas afetam a sociedade, entre outros aspectos (Foto: Jorge Mansur) |
“Entender como os medicamentos estão sendo prescritos e controlar a sua utilização dentro e fora das unidades de saúde são ações importantes para não deixar acontecer, no Brasil, o problema ocorrido nos Estados Unidos. Lá, os óbitos causados pelo uso indiscriminado de fentanil já são a principal causa de morte entre os adultos até 50 anos, superando o câncer e acidentes de trânsito”, adverte.
De acordo com a Drug Enforcement Administration (DEA), em 2021, cerca de 106 mil pessoas morreram no país de overdose de drogas e medicamentos, sendo mais de 70 mil delas causadas por fentanil. Isso equivale a uma média superior a 190 óbitos por dia. Os números podem estar subnotificados, pois nem sempre é possível realizar os testes para documentar o uso da substância.
Com um sistema de saúde bem diferente do brasileiro, os Estados Unidos, onde predomina a rede privada, sofrem, há alguns anos, os efeitos de um grande desvio de fentanil de ambulatórios médicos. Resultado de fraudes nas prescrições e até mesmo do envolvimento de médicos. Além disso, circula no país o chamado fentanil ilícito, produzido em laboratórios clandestinos e cuja porta de entrada no território norte-americano é, em geral, a fronteira com o México. A droga, que chega a ser 50 vezes mais potente do que a heroína, é sintetizada em forma de pó e, muitas vezes, é misturada à cocaína e à própria heroína, pois seu custo de produção é menor.
A situação é tão preocupante, que as autoridades norte-americanas instituíram o Dia Nacional de Conscientização sobre o Fentanil, o Fentanyl Day, que ocorre em 9 de maio. O evento envolve, também, organizações não governamentais, como a FentCheck, que distribui gratuitamente, em restaurantes, bares e casas noturnas, testes para verificar se determinados tipos de drogas podem estar contaminados com fentanil. A iniciativa ajuda a prevenir overdoses acidentais, pois, geralmente, o usuário não tem ideia de que está consumindo substâncias misturadas.