Paula Guatimosim
Em atividade na escola, alunos tiveram contato com o livro, identificaram as plantas no entorno e criaram um mural Panc (Fotos: Maria Beatriz de Castro) |
Livro derivado do projeto multidisciplinar “Criança Verde é Legal”, do Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), difunde conceitos relacionados aos direitos, saúde, nutrição e sustentabilidade. Dividida em sete capítulos, a obra traça um panorama sobre a interação entre alimentação, nutrição, segurança alimentar e nutricional e biodiversidade; resgata a alimentação de comunidades tradicionais, e aponta as Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc), como sugestão para estratégias de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, estimula o uso de espaços urbanos para cultivo de hortas, as habilidades culinárias e a adoção de receitas familiares, além de alertar quanto à necessidade de se evitar o desperdício.
Para a nutricionista e epidemiologista, professora associada em Nutrição e Saúde Pública do INJC, Maria Beatriz Trindade de Castro, diante das consequências das mudanças climáticas e do sistema alimentar hegemônico sobre a má nutrição, que envolve a desnutrição, o excesso de peso e as carências nutricionais, é cada vez mais urgente envolver as crianças e a população em geral nos temas ambientais rumo a um mundo que inclua uma alimentação sustentável. Com uma linguagem acessível e de forma lúdica, o grupo do projeto, que conta com pesquisadores e alunos da graduação e pós-graduação, introduz discussões sobre a importância do verde com crianças e adolescentes de escolas municipais e creches comunitárias do Rio de Janeiro.
Por meio do mapeamento do ambiente no entorno da escola, a equipe sugere o resgate da utilização das Panc na alimentação cotidiana, frente ao elevado consumo de ultraprocessados, e estimula o debate sobre o aproveitamento integral e a produção e o correto destino do lixo doméstico. O livro busca otimizar espaços para o cultivo de hortas, como a importância do aproveitamento dos canteiros abandonados e apresenta receitas a partir do emprego de Panc. Além de Maria Beatriz, que coordena estágios em comunidades vulneráveis, fazem parte da equipe do projeto as pesquisadoras Marla Ibrahim Uehbe de Oliveira, Amanda Rodrigues Amorim Adegboye, Maria Cecília Trindade de Castro, Andreia Andrade-Silva, Marianna Almeida Cunha de Azevedo Santos Maria Elza de Mattos Tobler Mastrangelo, Giovana Nigri e Juliana de Oliveira M. P. Ferreira. O segundo capítulo ficou sob a responsabilidade de Renata Sirimarco e Rute Costa; o terceiro foi escrito com a colaboração de Marta M. A. de Souza Santos: o quinto capítulo contou com a participação de Juliana de Oliveira Ramadas Rodrigues e Fernanda Bispo; e o sexto capítulo de Hellen Ataliba. Toda a concepção da obra - designer e pinturas de aquarela - foi realizada com alunos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), respectivamente, Pedro Melo e Hannah Cunha, sob a orientação das professoras Nair de Paula Soares e Dalila Santos, em atividades do projeto oriundas da extensão.
No início de agosto a equipe do projeto esteve na Escola Municipal Joaquim Abílio Borges, no Humaitá, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, para, junto com os alunos do ensino fundamental, fazerem o mapeamento e a identificação de plantas no entorno da escola e das residências próximas. A partir dessa atividade, as crianças produziram um Mural PANC, com desenhos e colagens. No dia 10/8 equipe e estudantes vão botar a mão na massa, preparando o terreno e plantando uma horta.
Ilustração botânica do ora-pro-nóbis e do coração da bananeira, ambos com receitas descritas no livro (Aquarela: Hannah Cunha) |
A importância da alimentação e da nutrição para promover o adequado desenvolvimento infantil e prevenir doenças também é abordada. O livro traz a concepção do direito humano à alimentação adequada, e considera a fome como um crime. Salienta que o uso de Panc na alimentação é uma estratégia nutricional para todos, independente da renda. “As Panc são uma opção sustentável, conversam com sistemas alimentares que preservam a biodiversidade, e promovem o acesso à comida de verdade”, explica Maria Beatriz, que atualmente é professora associada em Nutrição e Saúde Pública do Instituto de Nutrição da UFRJ. Além do baixo ou nenhum custo, as Panc têm alto valor nutricional e podem ser usadas como estratégia para a alimentação saudável, sustentável e segura, além de exercerem um papel importante para a soberania e a segurança alimentar e nutricional. Para as pesquisadoras, evitar o desmatamento, queimadas e outras ações antrópicas e predatórias são caminhos para reverter a deterioração do meio ambiente e a perda da biodiversidade.
O projeto contou com o apoio da FAPERJ por meio do Programa Pesquisa para o SUS: gestão compartilhada em saúde (PPSUS) uma parceria da Fundação com o Ministério da Saúde. Segundo as autoras, de um universo de 30.000 tipos de plantas comestíveis, 7.000 delas foram cultivadas ao longo da história, mas atualmente apenas 400 são utilizadas em diferentes países e regiões.
O segundo capítulo relembra histórias, a cultura e raízes da nossa terra, a diversidade dos biomas brasileiros, a contribuição dos povos indígenas e comunidades quilombolas para as práticas sustentáveis. Revela como a partir da relação dessas comunidades tradicionais com a natureza, sempre visando a preservação dos recursos naturais, foram identificadas plantas com uma grande diversidade de usos, não só como alimento, mas como corantes e até utensílios.
O livro descreve os hábitos do Quilombo Boqueirão, em Mato Grosso, que utilizam o jenipapo tanto como alimento quanto como corante natural de cor azul, por exemplo. Outro exemplo vem do povo Puri, indígenas que originalmente ocuparam o vale do rio Paraíba do Sul, e sua relação com a sapucaia, um fruto de casca dura e redonda, que quando maduro abre uma espécie de tampa por onde caem sementes do tipo castanhas. Parte da cultura alimentar dos Puri, a sapucaia também é utilizada como recipiente e tem forte conotação espiritual com a tribo, que enterra seus mortos aos pés de suas árvores. O ora-pro-nobis é outra planta bastante conhecida pela comunidade negro-africana. Também conhecida como lobô-lobô ou lobrobó, a ora-pró-nobis (que em latim significa rogai por nós) é conhecida por ser uma planta muito rica em ferro, além de cálcio e fósforo.
O terceiro capítulo é inteiramente dedicado às Panc, com descrições e fotos, como o caruru, a beldroega, a taioba e o dente-de-leão, entre outras, como devem ser preparadas e consumidas. Muitas vezes consideradas ervas e plantas daninhas, as Panc têm um papel importante para garantir a diversificação e a segurança alimentar e nutricional. “A ideia é resgatar a alimentação sustentável, saudável e saborosa, com elevada densidade nutricional e baixo custo”, garantem as pesquisadoras. Ao final, o capítulo oferece uma tabela com Panc, seus nomes científicos, parte comestível e forma de preparo.
A equipe do projeto orienta os jovens a identificar, cultivar e preparar receitas caseiras com Panc |
No quarto capítulo, as autoras enfatizam estratégias para a promoção da chamada Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) e para o atendimento das postulações do chamado Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e na Constituição Brasileira de 1988. Elas discorrem sob a ótica social de Josué de Castro na determinação da fome e como esse flagelo, social e político, afeta todos os continentes ao longo do tempo: a fome aguda, temporária; e a fome parcial, persistente e socialmente determinada. “Quando uma pessoa chega a sofrer restrição alimentar, todos os outros direitos humanos já foram comprometidos”, afirmam as pesquisadoras. Ainda nesse capítulo, o livro aborda os programas de governo e instituições dedicadas a tentar corrigir essas distorções, faz uma crítica aos retrocessos recentes e defende políticas públicas que evoluem junto com as mudanças sociais.
Em seguida, a equipe descreve os tipos de horta – rurais, urbanas, horizontais ou verticais - e os locais ideais para a implantação dos cultivos (de vasos a utensílios reutilizáveis), como planejar para ter sempre o que colher, e os fatores que influenciam desde a temperatura e tempo de luz solar, frequência e volume de rega, solo e compostagem, adubação orgânica, controle natural de pragas e doenças, enfim, um guia completo para quem deseja iniciar uma horta. Por fim, o livro traz receitas preparadas com algumas Panc, como pão de ora-pro-nóbis, caponata de mangará (coração da bananeira), maionese de cará, entre outras. Para encerrar, três páginas em branco para interação com os leitores realizarem o mapeamento de Panc no entorno da sua moradia, escola ou trabalho, e um espaço para incluir sua receita com Panc. A ideia é essa, aprender a identificar, cultivar e preparar receitas caseiras. Panc é comida de verdade para as autoras.