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Publicado em: 14/09/2023 | Atualizado em: 21/09/2023

Pesquisa da Uenf revela a diversidade de feijão produzido no Estado do Rio

Paula Guatimosim

As técnicas de cultivo e conservação, muitas vezes em garrafas PET, decorrem de interações com o sistema de produção voltado à segurança alimentar e nutricional da agricultura familiar (Fotos: Thâmara Figueiredo Menezes Cavalcanti)

Feijão com arroz. Combinação considerada base da alimentação da população brasileira. Produzido em todas as regiões do País, o feijão é um dos alimentos mais presentes na mesa dos brasileiros e uma das principais alternativas de cultivo em pequenas propriedades. Cozido ou como ingrediente principal de diversos pratos, o feijão está presente no País desde a pré-colonização, quando os indígenas faziam cultivo do grão, até se popularizar ainda mais com a chegada dos portugueses. 

Rico em proteínas e minerais, incluindo o ferro, além das vitaminas C e do complexo B (exceto a B12) e fibras solúveis e insolúveis, o feijão vem deixando de constar na dieta do brasileiro. Seu consumo caiu 50% nos últimos 16 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em meio a mudanças culturais e a crescente oferta de alimentos ultraprocessados, o aumento de preços do produto aliado à queda do poder aquisitivo vem levando a população a perder o hábito de comer feijão, com consequências para a segurança alimentar e para a saúde.

Entre janeiro de 2012 e janeiro de 2023, o feijão carioquinha acumulou alta de preços de 122% e o feijão preto, de 186%, comparado a uma inflação geral de 89% no período, segundo o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Ou seja, em pouco mais de uma década, o feijão carioca dobrou de preço e o feijão preto, quase triplicou. Essa alta de preços pode ser atribuída à queda na oferta do grão, já que dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) indicam que a área plantada com feijão no Brasil na safra 2022/2023 foi a menor da série histórica, iniciada em 1976, o equivalente a uma redução de 65% em relação à safra de 1981/82.

 O “Catálogo da Diversidade de feijão-comum do estado do Rio de Janeiro”, editado pela Editora da Universidade Estadual do Norte Fluminense (EdUenf), é fruto de uma pesquisa de cinco anos que buscou compreender a relação dos agricultores com as variedades de feijão-comum cultivadas no estado. Resultado do projeto “Compartilhando as sementes da paixão com seus guardiões: o estado do Rio de Janeiro como hotspot de agrobiodiversidade do feijoeiro”, desenvolvido na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) pela bolsista de Pós-Doutorado Nota 10 da FAPERJ Thâmara Figueiredo Menezes Cavalcanti, a obra estabelece um diálogo entre os conhecimentos tradicional e científico. 

O produtor Otacílio de Souza, 84 anos, planta feijão consorciado com milho, no município de Cordeiro (Foto: Cláudia Pombo Sudré)

O estudo, coordenado e organizado pela professora Rosana Rodrigues, uma das fundadoras da Uenf, Cientista do Nosso Estado e conselheira da FAPERJ; pelas pesquisadoras Cláudia Pombo Sudré (Uenf), Cláudia Roberta Ribeiro de Oliveira (Faetec), com colaboração da bolsista de extensão Paula Nascimento da Paz Lopes e da discente Laila Marinho da Silva, voluntária no projeto, além de 23 extensionistas da Emater-Rio. As fotografias foram feitas por Cláudia Pombo Sudré, Eduardo Hypolito e Márcio Freitas, da Assessoria de Comunicação (Ascom) da Uenf, e Thâmara Cavalcanti. O design e a diagramação são de Marcus Vinícius dos Santos Cunha, também da Ascom/Uenf. 

“Em geral, existe a percepção de que no estado do Rio de Janeiro não há agricultura”, explica Rosana Rodrigues. Mas o estudo atesta justamente o contrário. “A produção no estado está, majoritariamente, nas mãos da agricultura familiar, em propriedades de dois a 20 hectares, onde há plantio de várias culturas para o autoconsumo, como feijão, milho e mandioca”, esclarece Rosana. Segundo ela, o município de Campos dos Goytacazes já foi referência na cultura do feijão para o Centro Internacional de Agricultura Tropical (Ciat), com sede na Colômbia.  

Apoiada pela Emater-Rio, pela FAPERJ e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a equipe da pesquisa percorreu 27 municípios e visitou mais de 150 agricultores, entre os anos de 2015 a 2019. O estudo demonstra que o feijão-comum é uma cultura-chave dos sistemas agrícolas familiares em todo o estado, produzido por 88% dos agricultores visitados. Pouco mais de 60% cultivava mais de uma variedade e foram verificadas famílias conservando até 11 variedades diferentes. Mais de 300 amostras foram coletadas, com grande diversidade de cor, forma e tamanho. O feijão do tipo preto, preferido pelo mercado consumidor fluminense, correspondeu a somente 38% da diversidade encontrada. Além desse, mais de dez outros tipos também são produzidos, como os feijões roxinho (ou vermelho), pardo, carioca, rajado, amendoim, manteigão, mulatinho, branco, amarelo, verde, rosinha e bicolor.

Thâmara Cavalcanti: a Bolsista Nota 10 da FAPERJ é grata pela oportunidade de conviver com agricultores familiares de diferentes regiões e culturas (Foto: Cláudia Pombo Sudré)

Mineira de Montes Claros, município ao Norte de Minas, a Bolsista Nota 10 Thâmara conta que quando a professora Rosana lhe apresentou o projeto muita gente a desestimulou, alegando que o estado não tinha tradição no cultivo do feijão e que a maioria dos produtores só plantava feijão preto. No entanto, a agrônoma, uma apaixonada pela agrobiodiversidade insistiu no projeto, que acabou por revelar essa riqueza genética. “Foi muito especial ter tido a oportunidade de conhecer e conviver com agricultores familiares de diferentes regiões e contextos socioculturais diferentes e ter sido surpreendida por essa enorme diversidade de genótipos de feijão”, diz Thâmara. Uma das curiosidades com as quais ela se deparou foi o fato de cada região usar um tipo e cor de feijão no preparo da feijoada: além do preto, o vermelho, o carioca e até o branco.

No prefácio da extensionista Vera Câmara, da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) do município de Duas Barras, ela explica que o nome dado aos diferentes tipos de feijão é uma referência às características morfológicas, agronômicas, culturais e ambientais, podendo ser também resultado de compartilhamentos. As trocas de sementes feitas entre os agricultores e comunidades “permeiam as relações de solidariedade, parentesco, resultando em uma rede de conhecimentos tradicionais”, esclarece Vera. As técnicas de cultivo e conservação, muitas vezes em garrafas PET (para evitar caruncho) decorrem de interações com o sistema de produção voltado à segurança alimentar e nutricional da agricultura familiar. Como extensionista, incentivadora do uso e conservação da agrobiodiversidade e da manutenção dos bancos comunitários de sementes, Vera considera que dar visibilidade a estas sementes é valorizar um patrimônio que é a base da segurança alimentar. 

O feijão preto, preferido pelo mercado consumidor fluminense, correspondeu a somente 38% da diversidade encontrada (Foto: Lucimar de Oliveira Rodrigues Monteiro)

“A bioeconomia como fator de desenvolvimento é uma das saídas que trará o crescimento econômico aliado à sustentabilidade ambiental”, afirma Rosana na apresentação da obra. Para ela, o catálogo homenageia “aqueles que compartilham suas sementes e seus saberes, construindo uma rede que garante a sustentabilidade econômica e a segurança alimentar de populações ". A diversidade é de fundamental importância para que o melhorista de plantas desenvolva variedades mais resistentes às mudanças climáticas (calor intenso, estresse hídrico etc), assim como às pragas e doenças”, garante a pesquisadora. 

O estudo demonstrou que em quase todas as regiões, a produção do feijoeiro está voltada para o autoconsumo das famílias e para o abastecimento sazonal de feiras e mercados locais. Assim, a escolha da variedade a ser produzida baseia-se, em geral, no atendimento dos gostos e preferências culinárias dos agricultores (sabor, textura do caldo, tempo de cozimento, hábitos alimentares), no desempenho agronômico e menos nas exigências do mercado. As famílias relataram que as sementes foram, no geral, obtidas nos seus próprios estoques e de trocas ou doações entre parentes e vizinhos. Em algumas regiões, observou-se frequente aquisição de variedades não locais, ou seja, de fontes externas às comunidades, por meio de doação de órgãos públicos ou aquisição em supermercados, na forma de grãos. 

Seguindo uma tendência nacional, a área plantada de feijão no estado do Rio de Janeiro tem sofrido declínio progressivo, passando de 20 mil a mil hectares, nos últimos 30 anos. Além dos sabores, estão sendo perdidos saberes ancestrais associados ao cultivo e ao consumo. Esse cenário, provavelmente, tem resultado no contínuo desaparecimento da diversidade de feijões historicamente manejada pelos agricultores. Além da redução da área plantada, a equipe de pesquisa observou que outros fatores ameaçam a conservação das variedades localmente adaptadas nas regiões visitadas, como mudanças no regime de chuvas; políticas agrícolas de distribuição de sementes não locais e falta de apoio das prefeituras no uso de implementos agrícolas, entre outros. Por outro lado, as redes sociais de troca de sementes e as ações municipais que valorizam as práticas de conservação da agrobiodiversidade, foram fundamentais para a conservação de grande parte da diversidade encontrada.

A partir da página 12, o catálogo inicia a descrição das variedades de feijão-comum identificadas em cada mesorregião. Ricamente ilustrado com fotografias dos agricultores entrevistados, das lavouras e dos feijões, a obra também indica o georreferenciamento das propriedades visitadas e as peculiaridades de cada variedade como há quanto tempo é cultivada, cor da flor, tamanho da vagem e da semente, forma de obtenção e motivo para conservação. 

A primeira mesorregião descrita é a das Baixadas Litorâneas, onde foi identificado um Banco de Sementes de Feijoeiro mantido ativamente, na comunidade de Tapinoã, município de Araruama, composto por 14 diferentes variedades. Também em Araruama, o agricultor Hélio José Ribeiro explica a origem do nome de uma variedade: “Chamamos esse feijão de ‘oito e nove’ porque a vagem dá oito ou nove grãos”, explica. 

A equipe da Uenf contou com ajuda da Emater-Rio para percorrer 27 municípios, visitar cerca de 150 agricultores ao longo de cinco anos, coletando mais de 300 amostras de feijão (Foto: Samuel Henrique Kamphorst)

Rosana chama atenção para uma peculiaridade encontrada na Mesorregião Noroeste Fluminense: especialmente em Varre-Sai e Porciúncula, dois de seus 13 municípios, é comum o plantio e o consumo do feijão misturado, ou seja, de diferentes grãos juntos. O produtor Antonio Teixeira Mulinari, de Porciúncula, apresentou uma amostra com uma mistura de seis diferentes feijões e justificou: “Eu planto e como o feijão misturado. É muito melhor, não enjoa”. A engenheira agrônoma Rosana chama atenção para o fato de todo ano essas misturas de feijões colhidos se modificarem em decorrência das condições climáticas ou ataque de pragas e/ou doenças e a prevalência de algumas espécies. “Consideramos essa região um hotspot de agrobiodiversidade do feijoeiro. Ali, encontramos genótipos de origem mesoamericana e andina que trocam genes naturalmente”, esclarece a especialista em Melhoramento de Plantas. 

As amostras de feijão-comum coletadas na pesquisa foram doadas para a Uenf, que se comprometeu com os agricultores a fazer a gestão compartilhada desse patrimônio genético. Em uma das feiras de trocas de sementes realizada em Itaocara, no Noroeste Fluminense, as pesquisadoras conseguiram devolver sementes para um produtor que havia perdido sua lavoura. Rosana e Thâmara garantem que a partir desse levantamento, que ainda será estendido a outros municípios, novas pesquisas serão realizadas no campo do melhoramento genético, no estudo da diversidade que, ao longo de gerações, tem evoluído em relação às mudanças ambientais e socioeconômicas, sendo selecionada por suas qualidades nutricionais, adaptativas e agronômicas. Sempre visando apoiar os agricultores na conservação desse importante patrimônio genético. 

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