Claudia Jurberg
Partes das pesquisas foram realizadas no acelerador de partículas Sirius, que integra o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, São Paulo (Fotos: Divulgação) |
Pesquisadores brasileiros e alemães conseguiram comprovar, pela primeira vez, que a transição aberrante de um estado líquido para o sólido de uma proteína conhecida como prion é um caminho fecundo para a melhor compreensão de doenças como o mal da vaca louca e outras desordens do sistema nervoso. Os resultados foram publicados em artigo no prestigioso periódico Science Advances.
O trabalho contribui para entender a biologia da proteína prion na saúde e na doença. No estudo identificou-se que a prion forma pequenas gotas fluidas como líquidos em células saudáveis, os chamados condensados biomoleculares. Porém, em condição de estresse celular, os condensados tornam-se aberrantes perdendo a característica dinâmica das gotículas e adquirindo a de sólidos parecidos com aglomerados gelatinosos. Os condensados aberrantes descobertos podem ser futuros alvos terapêuticos para prevenir a neurodegeneração. A partir dessa pesquisa, o grupo acredita que contribuirá com a ciência internacional na busca mais certeira por compostos direcionados ao bloqueio dessa conversão errônea da fase líquida para sólida.
O estudo é assinado por nove pesquisadores, sendo três mulheres pioneiras na área. Mariana Juliani do Amaral, primeira autora do trabalho, concluiu o doutorado recentemente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, desde o mestrado, defendido em 2018, é referência no assunto. Amaral é precursora na América Latina de estudos dos chamados condensados proteicos e participa de diversos trabalhos sobre separação de fase líquido-líquido de biomoléculas.
A professora Yraima Cordeiro, também da UFRJ, é outra liderança nas pesquisas dessa área. É dela a primazia na descrição da transição anormal da proteína príon diante de certos cofatores. Estes cofatores são macromoléculas biológicas com carga negativa em ambiente celular como ácidos nucleicos. "O que tem sido visto para doenças neurodegenerativas é que pode ocorrer uma transição líquido-sólido, ou seja, a gota líquida passa a adquirir características de gel e, posteriormente, se solidifica em um fenômeno incorreto. Esse estado sólido é irreversível e parece se relacionar com certas doenças", explica Yraima.
Outra colaboradora do estudo é a professora alemã Susanne Wegmann, pioneira na descrição dos condensados da proteína Tau em neurônios. Esta proteína é abundante em neurônios e pode formar gotas líquidas em células saudáveis, que é capaz de evoluir para um estado sólido, possivelmente relacionado à doença de Alzheimer. Os resultados do artigo colocam mais uma peça em um intrincado quebra-cabeça sobre a proteína príon anormal, descoberta em 1982, pelo neurologista americano Stanley Prusiner, da Universidade da Califórnia. Ele formulou a hipótese de que o agente da doença do mal da vaca louca seria formado de material proteico e ganhou o Nobel de Medicina e Fisiologia de 1997 por seus estudos sobre o tema.
Mariana Juliani do Amaral (à dir.) e Yraima Cordeiro: pesquisadoras participam de estudo que pode ajudar na compreensão de doenças como o mal da 'vaca louca' e outras desordens do sistema nervoso |
No ambiente celular, aponta Yraima, existem duas fases líquidas: uma densa que é a gota líquida e o entorno dessa gota que é menos denso. Seria como gotas de óleo dispersas em água. As gotas de óleo são o estado condensado, contendo proteínas e podendo incluir outros ligantes, geralmente ácido nucleico. Neste estudo, observaram íons cobre. A separação de fase líquido-líquido é um processo fisiológico que ocorre em células vivas e que permite a concentração de macromoléculas em uma determinada região sem a necessidade de separação do ambiente externo por uma membrana lipídica. E este é um processo reversível e dinâmico com papel crucial para o bom funcionamento do ambiente celular. Porém, o que relatam neste artigo é um processo irreversível da fase líquida para sólida. E o sequestro de íons cobre em excesso junto ao estresse oxidativo sugere essa conversão anormal, com impacto no desenvolvimento de doenças.
"Pesquisadores têm estudado a ligação do cobre à proteína prion há mais de 20 anos, sugerindo que a prion sequestra íons cobre em excesso, protegendo as células do sistema nervoso do cobre livre, que é reativo. No trabalho publicado agora na Science Advances, o grupo mostrou que a proteína príon ligada a íons cobre forma gotas líquidas na interface celular, ou seja, nos pontos de comunicação entre uma célula e sua vizinha. O mecanismo de sequestro de cobre realizado pela proteína príon ainda permanecia um enigma até a divulgação deste estudo. Nós descobrimos que a proteína príon age como um tampão de cobre via separação de fase líquido-líquido, protegendo as células do excesso de cobre pela formação de condensados na membrana. Porém, quando há contato excessivo com cobre e estresse oxidativo, característico do envelhecimento, condensados sólidos, contendo a proteína príon agregada são formados, levando a crer na morte neuronal", diz Amaral.
As observações só foram viabilizadas devido a técnicas biofísicas avançadas, incluindo espectroscopia de raios-X de correlação de fótons usando a nova fonte de luz Síncrotron brasileira, do Sirius, no Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM). Além da recuperação de fluorescência após fotobranqueamento em células vivas, experimento realizado no Charité-Universitätsmedizin, Universidade de Medicina de Berlim. O estudo recebeu apoio da FAPERJ, além do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Sociedade Alemã de Pesquisa (DFG) e Associação Helmholtz e Fundação Hertie.