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Publicado em: 23/05/2024 | Atualizado em: 23/05/2024

Refauna restaura florestas pela interação entre fauna e flora

Paula Guatimosim

Bugio, cutia e jabuti-tinga são espécies que já estão contribuindo para a sustentabilidade da floresta e de suas próprias espécies (Fotos: Luísa Genes, Marcelo Rheingantz e Carolina Starling) 

Desde abril, os brasileiros estão assistindo estarrecidos ao desastre ambiental que se abate sobre o Rio Grande do Sul, um dos mais graves já enfrentados pelo País. Em apenas dez dias choveu um volume equivalente ao esperado para um ano. Como pesquisadores vêm alertando há alguns anos, as mudanças climáticas em decorrência do aumento da temperatura do planeta ocorrerão cada vez com mais frequência e intensidade. Desmatamento, queimadas, agricultura intensiva e o crescimento das cidades sobre as áreas verdes irão contribuir cada vez mais para a ocorrência de tempestades, vendavais, frio e calor intensos, inundações, deslizamentos, seca e estiagem.

Nesta quarta-feira, 22 de maio, foi comemorado o Dia Internacional da Biodiversidade, data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientizar a sociedade sobre a necessidade de se conservar e proteger a diversidade de vida no planeta. Equilíbrio ambiental é um conceito fundamental para a preservação e sustentabilidade dos recursos naturais. E para promover a harmonia e estabilidade dos ecossistemas, diferentes elementos precisam interagir de forma equilibrada, garantindo a sobrevivência e o bem-estar de todas as espécies que compõem o ambiente. Fauna e flora se complementam numa relação de dependência e ajuste complexo, a interação ecológica.

Defaunação de florestas é quando ocorre redução da riqueza, diversidade e população de animais, principalmente devido à caça e à fragmentação ou redução do habitat das espécies. “É uma consequência dos impactos das atividades humanas como caça, desmatamento, introdução de espécies invasoras, entre outras, que acabam por gerar perda de espécies ou diminuição das populações”, explica Alexandra Pires, bióloga do projeto Refauna, que é executado desde 2010 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).

Os animais – entre eles aves, marsupiais, primatas e roedores – têm um papel fundamental para a polinização e para a dispersão de sementes em locais onde elas possam germinar. Além de dispersá-las por uma grande área, os animais também ajudam a promover diversidade de plantas e ainda adubam as sementes com suas fezes. Em um elo perfeito, flora e fauna se complementam para manter a sustentabilidade de ambos.

Em condições de sombra e umidade, a semente da cutieira germina. Na floresta, já são encontradas plântulas da árvore (Foto: Pedro Mittelman)

A Floresta da Tijuca, com quase 4.000 hectares, considerada a maior floresta urbana do mundo, é um importante fragmento de Mata Atlântica, de cuja área original hoje resta apenas 24%, dos quais somente pouco mais de 12% são consideradas florestas maduras e bem preservadas. Transformada em Parque Nacional da Tijuca, a floresta nativa foi em parte suprimida, entre os séculos XVII e XIX, para dar lugar ao plantio de café, cana-de-açúcar e até pastagens, o que afetou o abastecimento de água na cidade. O processo só foi revertido com o plantio de 90 mil árvores e o isolamento das nascentes de água. Mas o replantio não foi suficiente para garantir a sustentabilidade da floresta, já que a defaunação acompanhou o desmatamento. 

Alexandra, que tem o apoio do programa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, para conduzir sua pesquisa intitulada “Restauração de Interações Ecológicas na Mata Atlântica através da Reintrodução de Fauna”, explica que foi no doutorado que ela iniciou as pesquisas sobre a interação fauna-flora. Na época ela estudava a redução de populações de palmeiras, cujas sementes, de casca dura, dependem da cutia (Dasyprocta leporina), roedor de dentes grandes, fortes e capazes de quebrar a casca e enterrar os frutos, colaborando para manter a sua população. Sem as cutias, as sementes eram atacadas por besouros e apodreciam sobre o solo, sem chance de germinar.

A pesquisadora conta que desde a década de 1970 o biólogo Aldemar Coimbra-Filho, um pioneiro nos estudos da Biologia e conservação dos mico-leões, já chamava atenção para a falta de dispersores na Floresta da Tijuca, onde havia paca, tatu, mas cutia não. A bióloga acredita que por ter hábitos diurnos – ao contrário do tatu e da paca, que são noturnos -, a cutia ficou mais vulnerável à ação humana e ao ataque de cães, que costumam circular pela floresta e são seus principais predadores. Ao constatar que a queda na população da palmeira estava associada à inexistência da cutia, imediatamente ela pensou em reintroduzir a espécie na Floresta.

A pesquisadora conta que foi na Praça da República (também conhecida como Campo de Santana), no centro do Rio de Janeiro, que foram selecionadas as cutias a serem reintroduzidas no Parque Nacional da Tijuca. Ela explica que foram adotados importantes procedimentos como a quarentena e adaptação dos animais, além de cuidados com o objetivo de diminuir a mortalidade nas fases pré-soltura.

“Foi um momento muito emocionante para mim, pois, quando criança, precisei usar botas ortopédicas. Meu pai sempre me acompanhava nas consultas para ajustes ali no Centro e depois me levava ao Campo de Santana para ver as cutias”, relembra. Esse grupo de 19 animais foi solto em 2010 e depois se juntaram a eles mais 45 indivíduos que vêm se reproduzindo com sucesso na Floresta; em 2020 uma fêmea gerou três filhotes. As cutias são fundamentais para a sustentabilidade da cutiera (Joannesia princeps), que possui esse nome devido à sua interação com a cutia. Isso porque o roedor é capaz de quebrar sua dura casca e devido ao hábito de enterrar sementes para posterior consumo, acaba plantando uma nova árvore, já que a semente da cutieira exige umidade e sombra para germinar. Alexandra explica que árvores de sementes grandes são as que mais sequestram carbono, contribuindo para minimizar os efeitos das mudanças climáticas.

Desde 2015, o Refauna reintroduziu também o bugio (Alouatta guariba) no Parque Nacional da Tijuca e mais sete indivíduos foram soltos este ano. Primata também extinto na Floresta da Tijuca, o bugio é conhecido por sua forte vocalização, parecida com um ronco, uma das mais fortes da natureza. Além de se alimentarem de diversos frutos da floresta e dispersarem suas sementes, os bugios possuem fezes que atraem o besouro conhecido como rola-bosta, que também ajuda no “plantio” de novas árvores. Outra espécie introduzida na Floresta da Tijuca foi o jabuti-tinga (Chelonoidis denticulata).

Alexandra esclarece que esses animais também são  importantes para o controle de espécies exóticas invasoras, como a jaqueira, que tem suas sementes consumidas pela cutia,  detendo a germinação. Além disso, o jabuti se alimenta de uma planta tóxica conhecida popularmente de comigo-ninguém-pode, reduzindo sua abundância.

Alexandra Pires: a bióloga do projeto Refauna agora está preparando a reintrodução da arara-canindé na Floresta da Tijuca

A ecóloga, que é professora associada do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), revela que a próxima espécie a ser reintroduzida no Parque Nacional será a arara-canindé, que num passado remoto enfeitava a Floresta da Tijuca com suas cores azul, amarelo e verde, as mesmas da bandeira brasileira. "Já foi instalado um cercado para dar início à aclimatação das araras, período em que oferecemos frutos da floresta para que ela aprenda a buscar alimento”, explica Alexandra.

Outras ações do projeto

Ao longo do tempo, a Rede para Reintrodução de Fauna e Restabelecimento de Interações Ecológicas (Rede Refauna) tornou-se uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), a fim de facilitar o estabelecimento de parcerias e convênios com todos os níveis de governo e também empresas. No estado do Rio de Janeiro, outro projeto viabilizou também a reintrodução de antas (Tapirus terrestris), em 2017, na Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua), onde o animal estava extinto há 100 anos. Mamífero herbívoro mais pesado da América do Sul, a anta está sendo reintroduzida em ação coordenada por Maron Galliez, do Laboratório de Ecologia e Manejo de Animais Silvestres do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (Lemas-IFRJ) e Asa-Socioambiental, com objetivo de realizar estudos acerca da sua capacidade de dispersão de sementes, ecologia espacial e outras interações ecológicas. Das oito antas vivendo nas florestas da Regua, duas  já nasceram em vida livre.

Apesar de ter tido sua biodiversidade ameaçada pelas ações antrópicas (decorrentes da ação humana), há poucos projetos de reintrodução de fauna no Brasil. Um dos mais conhecidos é o Projeto Mico-leão-dourado e os recentes programas de reintrodução de mutum-do-sudeste e da cutia, todos no estado do Rio de Janeiro. Apesar de ter sido quase totalmente coberto por Mata Atlântica no passado, o estado do Rio de Janeiro possui apenas 20% de sua área original e mais de 43 das espécies de mamíferos ameaçadas de extinção. O modelo do Refauna e de um protocolo de reintrodução serão úteis não só para o estado do Rio de Janeiro, mas para toda Mata Atlântica, e também poderá ser facilmente adaptado para outros biomas. É a sociedade tendo que aprender lições que só a natureza ensina.

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