Paula Guatimosim
Alguns exemplares da biodiversidade brasileira (a partir do alto à esq. em sentido horário): o Crustáceo Antipode Atlantorchestoidea brasiliensis (Foto de Silvana Gomes L.Siqueira); Fungo Aurantiopileus mayense (Acervo: MIND Funga); invertebrado fóssil Amonites sergipensis (Foto: Antonio Carlos Sequeira Fernandes) ave Mutum-de-Alagoas_Pauxi mitu (Foto Luis Fabio Silveira) |
Uma pesquisa iniciada há 15 anos e sem prazo para terminar reúne em um único catálogo o levantamento completo da flora, fauna e funga* do Brasil. O “Catálogo da Vida do Brasil”, um dos poucos existentes no mundo, é coordenado pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) e será oficialmente reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) como a única e oficial lista do País. O próximo passo será o levantamento dos micro-organismos e fósseis, além da inclusão dos animais domésticos e de interesse agropecuário. Sob a coordenação do JBRJ, os sistemas serão unificados, hospedados e gerenciados, reunirão todas as espécies de seres vivos do território nacional, com acesso livre para consulta.
O estudo, que reuniu cerca de dois mil taxonomistas e uma centena de instituições, até agora indica que o Brasil possui 133.000 espécies de animais e mais de 50 mil espécies de plantas e fungos conhecidas pela ciência. Mas, conforme explica Rafaela Campostrini Forzza, coordenadora do projeto, todos os dias pelo menos uma nova espécie é catalogada. Por isso a pesquisa está em constante evolução. O catálogo fará com que os números – que foram validados por especialistas do mundo todo – deixem de ser meras estimativas. “Temos a expertise dos taxonomistas, o know-how da Coppe [Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia, da UFRJ] na área de sistemas e dados, então, como autarquia do Ministério do Meio Ambiente, concluímos que concentrar todos os dados em nossa base seria positivo”, explica Rafaela.
Com a fundamentação básica e a qualificação das informações, o catálogo irá permitir uma busca online confiável; oferecerá a síntese dos diferentes grupos taxonômicos (por bioma, região, bacia hidrográfica etc.); padronizará nomes científicos em uso, revelará os grupos negligenciados e lacunas de amostragens e confirmará se realmente o Brasil é o país mais megadiverso do mundo. Na opinião de Rafaela, a maior contribuição da pesquisa será nortear políticas públicas que garantam o desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental e que identifiquem as áreas prioritárias para conservação.
O projeto, que conta com aporte de R$ 1,165 milhão da FAPERJ por meio do programa de fomento à pesquisa Apoio a Projetos Temáticos no Estado do Rio de Janeiro, teve início em 2008 com a pesquisa “Flora do Brasil”, também conduzida pelo Jardim Botânico e atualmente nomeada "Flora e Funga do Brasil (FBB)" por incluir, além das plantas, os fungos. Essa pesquisa também contou com aporte de recursos de cerca de R$ 2 milhões da FAPERJ, posteriormente consolidada como programa "Reflora", em 2010, pelo governo brasileiro, com suporte financeiro do CNPq.
Em 2015, esse sistema serviu de base para o desenvolvimento do "Catálogo Taxonômico da Fauna do Brasil" (CTFB), com aporte de recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e Ministério do Meio Ambiente, iniciado pelo biólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP) Hussam Zaher, um especialista em répteis que atualmente se dedica ao estudo dos fósseis. Com o afastamento do professor Zaher, o oceanógrafo Walter Boeger, mestre e doutor em Zoologia e professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), assumiu a coordenação da pesquisa.
“O trabalho da Rafaela na Flora é nossa inspiração. Foi ela quem acolheu a lista de espécies da fauna quando nós a finalizamos. Competente, ela tem uma capacidade única de mobilizar e agregar as pessoas”, elogia Boeger. Rafaela contesta em tom de brincadeira: “Faço tudo para descentralizar essa pesquisa, mas eles sempre querem me incluir em tudo”. Atual coordenadora da área de Ciências Biológicas da FAPERJ, Rafaela não consegue identificar o porquê da sua capacidade mobilizadora e agregadora. “Sou isso”, resume, ressaltando que trabalha com metas alcançáveis e não prorrogáveis, e que as pessoas gostam disto. Ele espera que o catálogo possa ser adotado por diversos ministérios.
Walter Boeger: o oceanógrafo afirma que o trabalho de Rafaela Forzza na Flora Brasil foi inspirador para os demais pesquisadores da rede (Fotos: arquivos pessoais) |
Boeger, que é carioca, recém-formado foi para o estado do Amazonas, onde atuou como pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Cursou mestrado e doutorado em Zoologia, nos Estados Unidos, e depois foi professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde ajudou a criar o Laboratório de Biologia Marinha de Itacuruçá, distrito do município de Mangaratiba, na Costa Verde fluminense.
“O reconhecimento do catálogo pelo Ministério do Meio Ambiente abrirá oportunidade para novos financiamentos no âmbito federal”, acredita Boeger. Segundo ele, até agora a lista da fauna inclui 133 mil espécies (de esponjas do mar a onças pintadas), diariamente atualizada por zoólogos especialistas em seus grupos. Desse total, os Artrópodes – maior filo de animais existentes, composto por invertebrados que possuem exoesqueleto rígido como gafanhotos e caranguejos, entre outros - representam mais de 86% (94.455). Mas o pesquisador ressalta o mais interessante: o levantamento não chegou nem perto da totalidade. Em palestra recente, ele elaborou um gráfico com a curva das espécies demonstrando o aumento de novas descobertas ao longo dos anos.
“Entender a biologia e a ecologia das espécies é fundamental para as tomadas de decisão, principalmente acerca de áreas de conservação”, ressalta Boeger. Para o pesquisador, o correto nome científico garante a veracidade da informação. Em sua opinião, a FAPERJ foi muito "ousada" em apoiar um projeto dessa monta.
Durante os próximos anos, a microbiologista Marinella Silva Laport enfrentará o desafio de coordenar o levantamento da lista de micro-organismos. Sua equipe é composta de oito colaboradores, que criarão uma rede para cada grupo/chave microbiológica. “Esses organismos estão em todo lugar – água, terra, ar –, por isso sua importância não é mensurável”, alega Marinella. Segundo a pesquisadora, não existe um catálogo de micro-organismos – que incluem arqueas e bactérias - no Brasil, e as informações ficam mais restritas às listas de coleções de cultura e aos trabalhos acadêmicos publicados. “Uma vez isso tudo catalogado, poderá ser base de apoio para o desenvolvimento de substâncias com aplicações em diferentes áreas, como por exemplo, novos medicamentos”.
Ricardo Drechsler: para o biólogo, o catálogo irá apresentar dados mais realistas. Já a microbiologista Marinella Silva Laport irá estudar organismos que estão em todo lugar - água, terra, ar -, e que ela avalia de importância imensurável (Fotos: Arquivos pessoais) |
Formada em Biomedicina, mestre e doutora em Microbiologia, Marinella dá o exemplo das pesquisas conduzidas no Laboratório de Bacteriologia Molecular e Marinha do Departamento de Microbiologia Médica, Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre o potencial biotecnológico decorrente das associações entre esponjas marinhas e bactérias. Os estudos demonstram a possibilidade de desenvolvimento de antibióticos, enzimas, entre outros produtos, a partir dessa interação.
“O Reino Fungi é um grupo extremamente diverso, com estimativas de riqueza que chegam a 5 milhões de espécies”, esclarece o pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ricardo Drechsler. Biólogo, mestre em Biologia Vegetal e doutor em Biologia de Fungos, ele garante que existe uma grande lacuna de conhecimento quanto a diversidade/riqueza de fungos que ocorrem no Brasil. “O Catálogo da Vida do Brasil chega para engajar especialistas no objetivo de apresentar dados mais reais sobre a diversidade e ocorrência de espécies da Funga do Brasil. Os fungos habitam os mais variados habitats, desempenhando um papel fundamental na manutenção da vida na Terra, tanto na degradação de matéria orgânica morta (sapróbios) e ciclagem de nutrientes, quanto associados simbioticamente a uma grande variedade de organismos, incluindo plantas, animais, outros fungos, algas e protistas. São também organismos de grande importância econômica, sendo amplamente utilizados nos setores alimentício, medicinal, industrial e agrícola.
“Eles participam desde processos de fermentação (como na produção de pães, queijos e bebidas alcoólicas) até na produção de metabólitos primários (como enzimas e ácidos orgânicos) e secundários (como antibióticos, pigmentos e aromas), biorremediação de solos, como fungicidas e biopesticidas, e como inóculos para micorrização de sementes de cultivos agrícolas, entre muitos outros usos”, explica Dreschsler. Segundo o pesquisador, apesar de sua grande importância, menos de 10% da riqueza estimada para o Reino Fungi é conhecida, o que faz com que esse grupo de seres vivos seja um dos com maior potencial para descoberta de novas espécies nas áreas de taxonomia e bioprospecção. Já o conhecimento dos fósseis, pode revelar formas de adaptação dos seres vivos às mudanças ambientais ao longo dos anos e suas estratégias para enfrentar as alterações climáticas cada vez mais severas.
* Termo adotado em anos recentes na Biologia para designar o reino dos fungos