Débora Motta
A partir da esq., em sentido horário, alguns dos pontos mapeados na publicação: a estátua de Borba Gato, em chamas; o coração de D. Pedro; as pedras do Cais do Valongo, no Rio; e Chico Mendes, em sua casa, no Acre (Fotos: Reprodução/Atlas do Chão) |
O chão não é apenas o lugar onde se pisa. Ele é testemunha de longos processos históricos de lutas e dominação e revela diferentes modos de ser e viver ao redor do mundo. Com esse olhar sensível sobre o mapa-múndi, visto como uma constelação dinâmica de pontos cartográficos em suas múltiplas dimensões e sentidos geopolíticos, o projeto Atlas do Chão: Constelação Independente se apresenta. Trata-se de uma plataforma aberta e colaborativa de pesquisa e experimentação cartográfica-historiográfica, que reúne pontos do território global relevantes para a compreensão dos processos de colonização, descolonização e urbanização. Além da plataforma, o projeto teve como desdobramento o lançamento de uma coletânea impressa, organizada pelos arquitetos e pesquisadores Ana Luiza Nobre, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e David Sperling, da Universidade de São Paulo (USP), e lançada com apoio da FAPERJ, por meio do edital Apoio ao Bicentenário da Independência e do Centenário da Semana de Arte Moderna, pela editora Rio Books.
Segundo os autores, a plataforma propõe a criação de um atlas virtual infinito, com uma dimensão ficcional correspondente à ambição desvairada de mapear o chão do mundo. “Na plataforma aberta e colaborativa do Atlas do Chão, o leitor pode criar constelações a partir das relações entre pontos já mapeados. Após preencher todos os campos solicitados, ele recebe um link para visualizar sua constelação, que poderá ser compartilhada com quem ele quiser. Sua constelação será também visualizada pela organização do Atlas que, mediante análise, poderá incorporá-la ao projeto”, explicou Ana Luiza, que coordenou o desenvolvimento da plataforma com recursos da bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, e é professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da PUC-Rio.
Na publicação, intitulada Atlas do Chão: Constelação independente, foram mapeados 200 pontos cartográficos estratégicos, ligados a processos de colonização, descolonização, urbanização e territorialização no mundo todo. “O chão é um arquivo do mundo e buscamos marcas, vestígios nesse complexo de histórias e processos para desconstruir e construir narrativas através das relações entre pontos geograficamente distantes. Alguns desses pontos nos fazem refletir sobre o processo de Independência do Brasil também e seus desdobramentos contemporâneos”, refletiu Ana.
David Sperling e Ana Nobre: autores da publicação que reúne análises críticas sobre os 200 pontos cartográficos destacados na obra (Foto: Divulgação) |
Ela explicou os critérios para a escolha dos 200 pontos cartográficos apresentados na obra. “Os pontos se inserem nesta encruzilhada onde as desigualdades herdadas da violência colonial se expressam como nunca no corpo em que pisamos cotidianamente, sobre o qual erguemos nossas casas, onde enterramos nossos mortos e do qual depende a habitabilidade do planeta. Mas onde também, junto com as ameaças crescentes provocadas pela urbanização descontrolada, a pavimentação extensiva, o extrativismo predatório, o agronegócio, o desmatamento, ainda podemos ouvir a floresta, na voz firme e doce de Ailton Krenak: “Pise suavemente no chão”’, completou.
Cada ponto do chão ganhou uma ficha impressa, com imagens e textos escritos por diferentes cartógrafos, sob uma perspectiva crítica, tanto histórica como geográfica. São eles: Ailton Krenak, Ana Beatriz Queiroz, Ana Carolina de Paula Bezerra, Ana Clara Mesquita, Ana Luiza Nobre, Anita Ekman, Alexandre Silveira, Beatriz Campagnolo, Beatriz Gonçalves, Beatriz Tone, Beethoven Alvarez, Cândido Domingues, Carlos M. Teixeira, Carolina Pifano, Carolina Sacconi, Casé Angatu, Célia Tupinambá, Clara de Freitas, Clara Ianni, Coletivo Rio Tupinambá Karioka, Cristiana Lyrio Ximenes, Daniel Lavinas, David dos Santos da Conceição, David Sperling, Diego Inglez de Souza, Eleonora Aronis, Erica Lopo de Araújo, Erico Melo, Francisco dos Santos Ekman Simões, Frank I. Müeller, Gabriel Feltran, Gabriel T. Ramos, Giovanni Bussaglia, Guilherme Giufrida, Guilherme Wisnik, Heitor Martins Guimarães, Heloisa Gesteira, Joana Martins, João José Reis, João Masao Kamita, Julia França de Melo, Júlia Frenk, Julián Fuks, Juliana Alcântara, Laura Pappalardo, Ligia Nobre, Lisette Lagnado, Lucas Pereira Bosco, Luciano Bernardino da Costa, Maria Thereza Alves, Mariana Dourado, Mariza Bezerra, Marcelo Moscheta, Marcelo Motta, Maria Manuel Oliveira, Maria de Fátima Bento Ribeiro, Mariane Cardoso, Marina Gil, Moreno Pacheco, Paola Dargoni, Paulo Tavares, Philippe Braga, Piero Leirner, Priscila Faulhaber, Roberto Conduru, Ruy Sardinha Lopes, Silvana Andrade dos Santos, Thais Barcellos, Victor Vaccari Machado, Victoria Nassif, Wellington Cançado e Wilmar D’Angelis.
Detalhe do encarte da publicação Atlas do Chão: Constelação Independente, que propõe reflexões necessárias para a compreensão do território hoje chamado de Brasil (Fotos: Reprodução) |
Entre os 200 pontos destacados na obra, estão a Barragem da Samarco, com rejeitos da mineração, que se rompeu em 2015, em Mariana (MG), provocando uma onda de destruição na bacia do Rio Doce; a Zona Franca de Manaus; Aldeias Pataxó em Caraíva, na Bahia; o Baobá Maria Gorda, ponto turístico em Paquetá tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac); a Belém-Brasília, rodovia construída nos anos do governo Juscelino Kubitschek; Belo Monte, a terceira maior hidrelétrica do mundo e a maior localizada exclusivamente em território brasileiro, e seus controversos impactos socioambientais; a Biopirataria da Amazônia, caracterizada pelo patenteamento de produtos tipicamente brasileiros por multinacionais estrangeiras, como a apropriação da marca ‘cupuaçu’ e açaí’; a imagem colossal do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, que representa o histórico de exploração de recursos minerais, caça e escravidão de ameríndios e negros; o chão do Cais do Valongo, que foi o maior porto escravagista do mundo, ignorado no asfalto durante décadas no Centro do Rio de Janeiro; a casa de Chico Mendes, defensor da Floresta Amazônica, em Xapuri, no Acre; o Coração de D. Pedro I, órgão conservado em formol que foi trazido de Portugal, onde encontrava-se sob os cuidados da Igreja portuense de Nossa Senhora da Lapa, ao Brasil, durante as comemorações do Bicentenário da Independência.
“Em vez de celebrar o bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022) através da reiteração de mitos e monumentos emblemáticos, tratamos de mapear pontos em diferentes temporalidades e contextos geopolíticos e socioculturais que possam contribuir para a desconstrução e reconstrução de narrativas, e para alimentar as discussões atuais sobre colonialismo, pós-colonialismo e neocolonialismo. Essas reflexões são necessárias para a compreensão do que chamamos hoje de Brasil”, concluiu Ana.